ESTADO CANALHA

A ciência política classifica os estados em diversos tipos: patrimonialista (a coisa pública usada em benefício próprio, como em Corrupté); burocrático (no sentido weberiano, de máquina racional, profissionalizada, formal e impessoal) e o gerencial (um degrau acima, em que a eficiência e a eficácia dos serviços públicos passam a ser priorizadas). Para nós outros, brasucas, há uma modalidade nacional do estado patrimonialista: o estado canalha.

Experimentei-o com maior intensidade na semana passada. Descia eu a serra de Campos do Jordão e fui abordado por um educado policial rodoviário: o radar com reconhecimento de caracteres lera a placa do meu carro e foi verificado que a licença estava vencida. Em ocasiões tais surpreendo-me e resigno-me ao mesmo tempo, porque sei que a memória sempre me trai e, de fato, tinha comigo que tinha pago a licença com três meses de antecedência (janeiro), mas na realidade tinha pago com nove meses de atraso e, assim, fiquei irregular em mais de ano.

Começa aí o pesadelo kafkiano. O policial disse-me que o carro seria apreendido e eu não podia seguir viagem. Perfeitamente, respondi. Peço para alguém vir me buscar, vou até o banco e pago a licença. “Não senhor. O carro vai ser guinchado até Taubaté”. Que isso?! perguntei. Há espaço aqui, por que meu carro não pode ficar estacionado? “Está no código de trânsito”, respondeu. Em questão de minutos um guincho já havia chegado, bocarra aberta para engolir meu “veículo” (as multas são redigidas em português – veículo – e nós falamos brasileiro - carro). Cordialmente, o comando da rodoviária e o próprio policial, franqueram-me transporte numa viatura ou a possibilidade de vir de carona no caminhão de guincho

O carro foi ao famigerado pátio de recolhimento por volta das 16h00. No dia seguinte, (1) Poupatempo (ilha rara de estado moderno); (2) polícia rodoviária (novamente um policial educado, com o plus de ser bem informado e muito atencioso); (3) pátio do guincho; (4) banco; (5) pátio do guincho novamente e vem a conta do dito: R$ 370,00!! Como é? perguntei, estarrecido. “Simples”, disse o funcionário. “Taxa de guincho (R$ 120,00); deslocamento (R$ 4,00/km) e duas diárias (R$ 40,00).” Duas diárias? Por menos de 20h de permanência? “Mesmo que o senhor tivesse entrado aqui às 23h30 de ontem, seriam cobradas duas diárias. Tá na portaria do DER.”

Vejamos os absurdos. Estamos sob o império de um estado canalha, com leis formuladas engenhosamente como oportunidades de negócios.

Primeiro, pelo atraso de uma licença de R$ 60,00 sou multado em R$ 560,00 (R$ 190,00 mais R$ 370,00). E o princípio elementar da proporcionalidade? Segundo, por que o carro não pode ficar retido por, digamos, 24h no próprio pátio da rodoviária? Em caso de inação, ai sim a mão brutal do estado poderia levar para um pátio. Terceiro, se o estado pode usufruir da tecnologia avançada de radares inteligentes, por que não cobrar a multa no local, em espécie, ou via cartão de crédito ou de débito como em países civilizados? Mas não, a lógica do estado canalha é outra: tecnologia é para onerar o cidadão, nunca para fazer justiça. Explica-se assim parte da birra do brasileiro em seguir a lei, porque sabe-a irracional e injusta em grande parte.

A situação do tal guincho daria um tratado de como intimidar, afrontar e extorquir cidadãos indefesos por meios legais. Exemplo acabado de como uma necessária disciplina pode ser, ao mesmo tempo, vista e concretizada como uma infinita oportunidade continuada de ganhar dinheiro. Trata-se do código de trânsito brasileiro. Lembram-se do esquecido estojo de primeiros socorros? Oportunidade descomunal de ganho: milhões de veículos, que renderam milhões a fabricantes. O tal pátio de recolhimento, oportunidade ainda maior. Só o pátio da SITRAN, em Taubaté, tem cerca de 2.000 veículos apreendidos administrativamente, o que, mesmo com cobrança máxima de 30 dias de pátio, gera a fábula de cerca de R$ 2.400.000,00/mês!

Se não fossem pessoas corretas, graninha tal daria, se fosse em Tocantins, para comprar juiz, desembargador (baratinho: R$ 15.000,00 o voto), diretor, deputado, policiais corruptos, secretários, etc. Imagine a gratidão que os 33 concessionários (só em SP) desses pátios têm pelos deputados que aprovaram essa enormidade no Congresso Nacional. Imagine se todos os envolvidos nessa corrente de acinte ao cidadão não se sentirão motivados a contribuir, vida afora, com as campanhas e finanças dos autores dessa patranha.

Não vai ficar assim. No que depender de mim, divulgarei aos quatros ventos e usarei todos os recursos da internet para uma mobilização visando mudar a lei – que indigna os próprios policiais honestos que conheci neste episódio.

Comentários

Ronaldo Franco disse…
Caro Jofre, realmente a coisa é feia e as pessoas só se dão conta da apropriação quando passam pela experiência, é como todos os problemas: saúde, segurança, justiça etc...
O CTB determina a apreensão do veículo em várias infrações e donos de pátios estão ricos ; em termos de município o ideal é termos Pátios administrados pela Prefeitura, pelo menos poderia ser mais barato e de alguma forma o dinheiro voltaria aos contribuintes, obviamente com uma boa gestão!!
Sergio Adriano disse…
Caro Joffre,acompanho seu empenho na luta pela ética na política. Sou seu eleitor e espero que continue honrando a bandeira da honestidade e da ética. Parabéns pelo retorno à Câmara Municipal de Taubaté.

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