NOVE DE JULHO



Mais um efeito colateral da Copa: o completo esquecimento da Revolução de 1932. Estamos em pleno feriado em sua comemoração e nos dois principais jornais de São Paulo nem sequer uma linha sobre a saga dos bravos paulistas que tombaram por um ideal.

Reproduzo abaixo a crônica que escrevi no ano passado:

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NOVE DE JULHO

Passei a minha infância ouvindo mamãe relatar a "guerra" de 1932: as escolas evacuadas às pressas, minha bisavó portuguesa enrolando numa toalha a sagrada imagem do Santo Cristo (seu único vínculo com a longínqua Ilha de S. Miguel, Açores - hoje preservada por meu tio Ambrosio Guimaraes Netto), e fugindo para as vargens do Rio Entupido, com as crianças agarradas as barras de sua volumosa saia açoriana, apavoradas e sem bem compreender o que acontecia - tanto as crianças quanto ela -, deixando para trás a casa vazia, sem guarda, a ponte do Paraíba dinamitada para impedir a passagem das tropas federais, e a ameaça do "trem blindado", que arrasaria tudo.

Depois, as terríveis batalhas rurais, em que as balas traçantes, tais como "botões de brasa vermelha", sibilando entre os morros, pareciam que, a qualquer momento, iriam incendiar as ressacadas e frágeis coberturas de sapé das casinhas de caboclo. Aos adultos causavam pavor; às crianças, curiosidade, reprimida a sapecadas nervosas, quando enfiavam os narizes pelas frestas das janelas para ver aquele fascinante espetáculo mortal.

E os vôos dos "vermelhinhos" - os biplanos getulistas, que aterrorizavam as tropas e a população, que temiam quando eles "botavam um ovo", da morte - apesar da mira precária.

A marcha das tropas, com "perneiras envernizadas reluzindo ao sol", se movimentando em sincronia hipnótica, arrancando das estradas de terra sons nunca ouvidos naqueles cafundós: a batida surda e amedrontadora de botas militares.

A alegria ingênua das crianças quando o "filho da Diolinda, um negrão forte", veio, de repente, visitar a mãe e trouxe-lhe uma novidade: uma lata de bolachas de campanha, jogada do alto cavalo, do qual ele sequer apeou pela urgência de voltar ao front.

Mas também o horror da guerra. A "guerra" era em miniatura, mas seus danos em escala real: o saque das fazendas; o casamento interrompido e o noivo, que ousou resistir, jogado alpendre abaixo pelos soldados cariocas; os bens confiscados; os corpos enterrados em covas anônimas naqueles campos ermos; os filhos e maridos que se foram e nunca mais voltaram.

E, finalmente, os feridos de guerra, incapacitados para voltar a sustentar suas famílias, jogados nas agruras mais amargas, abandonados pelo governo que os convocara, como se nada lhes devessem. Bem se lembram seus filhos, como meu primo Roberto de L orena.

E no dia em que esses heróis deveriam ser reverenciados e as causas da Revolução Paulista amplamente debatidas, mal se sabe o que se comemora neste feriado, lembrado, de tangente, em notinhas secundárias, mesmo nos dois principais jornais desta terra.

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